Prometi recentemente a um amigo que me iria expressar sobre a causa dos sem abrigo, esses refugiados sem amparo que habitam nas margens, mas ao nosso lado, as intempéries deste tempo sem guarida e sem norte. E fazê-lo sem lamechices e fora de qualquer intenção de ser politicamente correto. Aqui vai uma proposta que, de resto, poderá ser aplicável a outras situações de pobreza.

A integração desses nossos concidadãos na sociedade passa essencialmente pelo trabalho. E daí que cumpra saudar desde já, o despacho do Governo que concede aos sem-abrigo inscritos no Instituto de Emprego e Formação Profissional, equiparação a desempregados (D.R. de 28 de novembro 2019). Um passo apenas, é certo, mas no bom sentido.

O trabalho acompanha umbilicalmente a vida dos homens, hoje como antes, sendo, pois, uma realidade tão antiga como a vida humana. Os seus rostos, esses, mostram-se historicamente contraditórios e ambivalentes, designadamente quanto ao seu sentido e valor, sobretudo quando a ideia de trabalho fica, ou é confinada, ao marco histórico da industrialização e do capitalismo. Há, porém,  trabalho antes e para além daquele que, sob o modelo de trabalho subordinado, conhecemos como emprego e que é geralmente visto como mero fator de produção e fonte de riqueza material. Muito mais do que a sua dimensão produtiva e mercantilista, a natureza do trabalho humano, a sua essência, consagra-o como fonte de laços sociais, de identidade pessoal, como gerador de reconhecimento, como força de libertação e de realização pessoal.

A vida social assenta, pois, no trabalho, sendo este condição essencial do bem-estar humano, individual ou coletivo. O trabalho humano é a via pela qual a personalidade humana se expressa na sua função transformadora do mundo e de domínio da natureza enquanto vocação humana. Os sem-abrigo são cidadãos excluídos da vida social normal e para quem a sociedade olha com um misto de repúdio e compaixão. No caminho, deixa-se-lhes por perto uns trocos, alguma coisa de que já não precisamos e, claro, exige-se ao Estado que os tire das nossas vistas ou esconda das nossas consciências deformadas. Este é, porém, um caminho que apenas alimenta o isolamento e a humilhação dos sem-abrigo, pois do que eles menos precisam é de dinheiro, de bens materiais, de aceder à sociedade de consumo em que os outros, nós, andamos enredados e iludidos. Se se quer, de verdade, ultrapassar esta dramática realidade há que ter bem presente que apenas pelo trabalho se alcançará a união “entre o espírito e a coisa”(A. Supiot) pondo-se fim à servidão, também dos sem-abrigo.

É nos caminhos do trabalho decente que se poderá encontrar a libertação dos humilhados e não vale a pena andar à volta da questão como um infeliz hamster na sua gaiola pedalando sem fim. O trabalho faz o Homem e a subsidiodependência humilha-o. É essa a razão pela qual as políticas públicas devem mudar o foco sobre tal realidade. Os sem-abrigo têm dentro de si todas as potencialidades para se reconstruirem – e muitos o desejam – apenas é necessário ver neles pessoas como nós. No que vai um desafio às políticas governativas sobre o trabalho (e não só sobre o emprego) e à concorrência dos que, entre nós, passamos por eles indiferentes. Se não forem ostracizados como o têm sido, quem poderá afirmar que entre eles não estejam os melhores para cuidar dos mais velhos, dos doentes e de outros mártires da vida, por exemplo? Experiência não lhes faltará.

Que se lhes abram, pois, as portas do trabalho decente, pois eles farão o restante.

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